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sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

LAGOS E A ESCRAVATURA NA HISTÓRIA DOS DESCOBRIMENTOS

Em Lagos, o tráfico negreiro quatrocentista tornou-se palpável.

Lagos, cidade desenhada por Alexandre Massai [c. 1621]. Códice Vieira da Silva, fls. 40 -41.
Cota 1402 -16. Arquivo do Museu de Lisboa. Cota 1402 -16.


Em 2009 foram encontrados em Lagos, no Algarve, os esqueletos de 155 homens, mulheres e crianças, revelando o mais antigo espaço já identificado no mundo e o único na Europa com aquelas características. Ou seja, uma lixeira onde foram depositados há seis séculos os corpos de escravos africanos. Hoje, o terreno está ocupado por um estacionamento e um minigolfe e é alvo de divergências entre a autarquia e historiadores. E as ossadas foram enviadas para Coimbra para serem estudadas.

Depois de trabalhos de avaliação do impacte arqueológico, foi descoberto um importante conjunto de ossadas humanas, muitas das quais colocadas em posição anormal. Sabia-se que naquele local teria existido no final do século XV uma leprosaria (o próprio termo gafaria ainda persiste na toponímia), o que talvez explicasse os esqueletos, mas, na verdade, a disposição de alguns deles, a descoberta de mulheres com filhos nos braços e os traços negroides de mais de centena e meia de indivíduos lançaram para o ar várias dúvidas. Estavam ali mais do que restos mortais de doentes com lepra, embora a descoberta da gafaria, por si só, fosse inédita no contexto arqueológico português.

Cronologia e as rotas dos principais movimentos de tráfico negreiro. Mapa: NGM-P.
Fonte: “An Atlas of the Transatlantic Slave Trade”, de David Eltis 
e David Richardson. reproduzido com autorização de Yale University Press.

"Quem quer passar além do Bojador / Tem que passar além da dor”, refere o poema “Mar Português”, escrito em 1934 por Fernando Pessoa. Não deixa de ser curiosa esta alusão, exatamente 500 anos após Gil Eanes ter dobrado o também designado cabo Medo. Corria o ano de 1434 quando essa entrada de terra mar adentro, no atual Saara Ocidental, foi por fim vencida e, com esse feito, se inaugurou um novo marco na expansão marítima nacional.

Para trás, já tinham ficado as descobertas das Canárias em 1341, Porto Santo e Madeira respectivamente em 1418 e 1419 e os Açores em 1427, sob o impulso da conquista de Ceuta de 1415, que corresponde à data “oficial” do arranque da Expansão. 

Apesar das regalias oferecidas a quem pretendesse colonizar alguns destes territórios encontrados vagos de gente aquando das suas descobertas, cedo se percebeu que os incentivos não sensibilizaram quem tivesse vontade de abandonar a pátria continental e partir um pouco à aventura para terras desconhecidas. Mas, mais do que isso, os primeiros colonos depressa se aperceberam das dificuldades em desbravar aquela terra. Tornava-se premente a necessidade de mão-de-obra.

Depois de as caravelas esquadrinharem à bolina o golfo da Guiné e costa da Mina e dobrarem em 1441 o cabo Branco, avistaram-se em 1456, pela primeira vez, as ilhas cabo-verdianas. Na costa ocidental africana, foram iniciados contatos com os habitantes locais, que se poderiam tornar na tal “força de braços” que tanto urgia para  aproveitar os territórios já encontrados. 

Não surpreende, então, que nos inícios da década de 1440 diversos navios lançassem âncora em algumas cidades portuárias de Portugal com o intuito de desembarcar indivíduos de raça negra provenientes da costa ocidental africana, com a finalidade de serem vendidos como escravos após licitação em praça pública. É aqui que o “mistério” de Lagos entronca.

A "magnífica" cena desse leilão ocorre na manhã de 8 de agosto de 1444, na vila algarvia de Lagos, quando os habitantes acordaram com a notícia de que durante a madrugada tinham chegado da costa africana, onde hoje é a Mauritânia e o Senegal, meia dúzia de caravelas com 235 cativos negros e brancos, porque também havia berberes. Foram leiloados à frente do infante D. Henrique, que foi o patrono do tráfico de escravos no Atlântico.

Embora se soubesse que havia comercialização de escravos, escasseava informação no registo arqueológico – existiam só alguns documentos, um dos quais escrito por Gomes Eanes de Zurara.

No capítulo XXIV da sua “Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné” (1451), este cronista escreve sobre o dia 8 de Agosto de 1444: “Chegaram as caravelas a Lagos (…) Pelo qual me parece que será bem que de manhã os mandeis tirar das caravelas, e levar àquele campo que está além da porta da vila, e farão deles cinco partes, segundo o costume (…) O Infante disse que lhe prazia; e no outro dia muito cedo mandou Lançarote, aos mestres das caravelas, que os tirassem fora e que os levassem àquele campo, onde fizessem suas repartições (…)”

Voltamos a olhar para o Vale da Gafaria. Aquele campo para lá da porta da vila a que se refere o cronista ajusta-se ao local da construção do parque de estacionamento, fora das muralhas citadinas. Lagos era então a base das navegações, sendo legítimo que, ao atracarem no seu porto, as caravelas descarregassem os escravos. A substanciá-lo, volta a estar a crónica de Zurara, que refere o sofrimento dos cativos. “Uns tinham as caras baixas e os rostos lavados com lágrimas, olhando uns contra os outros; outros estavam gemendo mui dolorosamente, esguardando a altura dos céus (…) outros feriam seu rosto com suas palmas, lançando--se estendidos em meio do chão”, escreveu. cena seguinte deste quebra-cabeças passa-se na privacidade de um laboratório. Mais de um ano depois de terminarem as escavações de emergência, a equipa da Dryas prossegue a investigação associada aos elementos recolhidos no Vale da Gafaria. Apesar dos indícios que suportam a hipótese de que se trata de um local de sepultamentos, falta a prova dos nove, ou melhor, a “prova dos quatrocentos”: será que a datação por radio-carbono dos vestígios osteológicos comprova que estes indivíduos terão vivido no século XV?

Antigo porto de Lagos e Aonde se presume tenha sido o
primeiro Mercado de Escravos da Europa quatrocentista.

Apoiados pelo Centro de Investigação em Antropologia e Saúde, os arqueólogos retiraram fragmentos de costela de um dos primeiros indivíduos inumados no contexto arqueológico – o esqueleto conhecido por “indivíduo 169” – e enviaram-nos para datação. No contexto da arqueologia, as disputas sobre datação costumam ter um árbitro inatacável. A datação por radiocarbono é como o algodão: não engana.

Após algumas semanas de espera, o resultado comprovou as expectativas. O indivíduo em causa terá morrido entre os anos 1420 e 1480 d.C. – os primeiros momentos da história portuguesa (e de Lagos) associados ao tráfico de escravos de África para a Europa. “Parece que temos mesmo algumas das primeiras vítimas deste comércio inaugurado no tempo do infante Dom  Henrique”, sintetiza Maria João Neves, arqueóloga da Dryas.

Não subsistem dúvidas, portanto, de que os esqueletos encontrados em Lagos são referentes a escravos – excetuando os da gafaria, evidentemente. A juntar a estes elementos, foram descobertos ainda utensílios tipicamente africanos associados a duas sepulturas. A configuração craniana não caucasoide valida igualmente esta dedução. Mas havia mais um elemento desagradável à espera dos arqueólogos: muitos dos esqueletos apresentavam-se com as mãos juntas como se ainda estivessem amarrados segundo técnicas de imobilização características da época. “Há um desrespeito claro pelas regras de enterramento canónico, o que indicia uma desvalorização dos indivíduos falecidos”, diz Miguel Almeida, o arqueólogo que coordenou os trabalhos. O agrilhoamento foi posto de parte, uma vez que não se encontraram grilhetas ou outros vestígios arqueológicos. Teriam sido, ao invés, manietados com cordas ou outros materiais perecíveis.

Também na mesma linha de importância, realce-se o local onde estes foram encontrados – além da casa da leprosaria, aquele terreno fora das muralhas serviu até ao século XVII como lixeira. Maria João Neves fundamenta a ideia: “Juntamente com os escravos, foram encontrados inúmeros desperdícios e vestígios, e não se deve esquecer que, à época, os escravos também eram encarados como ‘lixo’”. No entanto, ressalve-se que existem dois tipos de enterramentos: “Alguns foram simplesmente atirados para o aterro, mas outros denotam preocupação de enterro, com alguma dignidade, digamos assim, talvez porque fossem escravos de segunda ou terceira geração, já nascidos em Lagos, talvez por terem morrido já depois de terem sido comprados ou até por diferenças de crenças entre quem os sepultou. No fundo, eram marginais à sociedade de então, daí terem sido depositados na lixeira.”

Não se pense, contudo, que o comércio escravagista se circunscrevia a Lagos ou ao Algarve. Com efeito, as caravelas podiam parar em Lagos, mas seguiam a sua rota, na maior parte dos casos na direção de Lisboa. Aqui, obviamente, eram também licitados e podiam seguir para diversos destinos – a capital, outros pontos de Portugal e, inclusive, outras paragens europeias e até para as Américas. Basta lembrar que na toponímia de Lisboa, Elvas ou Rio de Janeiro, há travessas do Poço dos Negros e a tradição oral de Lagos ainda recorda um Mercado dos Escravos. O que realmente distingue o caso de Lagos em relação aos restantes em Portugal é que nunca, como ali, foram encontrados tantos vestígios de comercialização de escravos deste período.

O trabalho não acabou com a recolha dos 155 indivíduos – dos quais 99 adultos – entre homens, mulheres e crianças. Apesar de as escavações terem sido dadas como concluídas há sete anos, os dados ainda estão a ser estudados e analisados pela equipa da Dryas. Maria João Neves assegura que “ainda só estamos no início. É um trabalho minucioso, paciente, mas feito com muita paixão. E porque se trata realmente de uma situação extraordinária em termos mundiais, temos imensa força de vontade de que, um dia, se conte a verdadeira história deste caso de Lagos”.   

Mesmo com toda a experiência arqueológica, uma escavação que envolva esqueletos humanos é sempre especial para os investigadores e para os transeuntes. Muitos dos trabalhadores que construíram o parque de estacionamento eram portugueses, mas havia igualmente brasileiros e africanos.

Crânio com evidentes modificações dentárias, uma prática tradicional na costa ocidental africana.

“Depois de saberem a história, os brasileiros comoviam-se por pena, como que imaginando o que alguns deles poderiam ter penado se tivessem ido para as terras de Vera Cruz e que poderiam por lá ter disseminado o seu sangue”, conta Maria João Neves. “Da parte dos africanos, senti respeito, como se estivessem a lidar diretamente com os seus ascendentes. Uma imagem que me fica na memória é vê-los a observarem silenciosamente os esqueletos que recolhíamos…”

Por ora, esta é uma história incompleta, pois a investigação vai continuar. Há uma questão que ainda atormenta Miguel Almeida e Maria João Neves. De onde vinham estes escravos? Com as tecnologias modernas, cruzando informação morfológica, registos etnográficos sobre práticas de modificação dentária (abundantes nos esqueletos de Lagos) e informação documental sobre as rotas de escravos mais comuns nos séculos XV e XVI, talvez seja possível determinar a origem geográfica daqueles seres humanos que, involuntariamente, escreveram uma página dos Descobrimentos.


Fonte: National Geographic 

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