E,
de repente, os ônibus de São Paulo pararam, em flagrante ilegalidade. Pode ser
que assim alguém se refira ao fato ocorrido ontem na cidade paulistana, mas
estará incorrendo em grave equívoco de perspectiva, falando sobre um mundo que
já não existe.
Primeiro,
os fatos sociais não simplesmente brotam do nada, ou seja, não ocorrem “de
repente”. Há sempre um contexto histórico que os embasam. Segundo, não são os
ônibus que param e sim os motoristas, que são, de fato, trabalhadores. Dar vida
a seres inanimados, no caso os ônibus, serve apenas para negar existência aos
seres humanos que se relacionam ao fato, a não ser para puni-los, quando se
trata de mobilização popular. E, terceiro, a legalidade não é suficiente para
qualificar o fato ocorrido e, ademais, seu parâmetro tradicional é abalado,
fazendo irromper uma sensível mudança. Afinal, não são os fatos sociais que
devem se adaptar ao direito e sim o direito que deve refletir esses mesmos
fatos.
Seguindo
o exemplo inaugurado na greve dos garis do Rio de Janeiro, a mobilização, em
grande escala, dos motoristas e cobradores na cidade de São Paulo, que deixaram
os ônibus parados nas ruas em protesto, mesmo após o seu sindicato ter firmado
acordo com a entidade patronal, cuja regularidade pretendem pôr em discussão,
demonstra, claramente, que as manifestações de junho de 2013 continuam
produzindo efeitos, sendo que os maiores deles talvez sejam o das pessoas
reconhecerem sua força política e de se disporem a lutar por aquilo que
acreditam.
A
lição que se extrai desses fatos é a de que as pessoas, em virtude da vivência
democrática, estão assimilando maior consciência política e compreensão da
realidade, passando a se sentir capazes de agir no sentido de enfrentar as
estruturas que as oprimam, sem a necessidade de líderes, ou como diria Caetano,
de “ridículos tiranos”.
Eis
a perplexidade que abala não apenas as forças punitivas como também as
estruturas de contenção da ação política dos trabalhadores. Há muito se
discute, academicamente, o problema da organização sindical brasileira e sempre
se quis acreditar que o direito impedia a consciência de classe e mesmo que
obstava a ação verdadeiramente política dos trabalhadores. Mas, como efeito do
percurso histórico iniciado em junho do ano passado, que está atrelado, ele
próprio, a experiências históricas, aí estão os trabalhadores nas ruas, sem
líderes, superando, em concreto, a forma jurídica.
Pela
ação política a reforma sindical se tornou um dado da realidade, impulsionando,
ainda, uma alteração necessária na compreensão acerca do fenômeno greve, que é,
como diz a Constituição brasileira, um direito dos trabalhadores e não dos
dirigentes, muitos destes que se encastelaram e se perderam na lógica
burocrática.
A
greve como direito do sindicato despersonifica os trabalhadores e torna mais
fácil a interlocução persuasiva e punitiva que se direciona contra o sindicato
e seus líderes. Na greve como direito dos trabalhadores, que a exercem como
ação política, abre-se um diálogo social mais extenso e intenso, impondo uma
espécie de abertura das artérias que nos ligam e nos distanciam.
No
estágio atual de compreensão e de consciência política da sociedade brasileira,
as instituições que se apresentem ainda antidemocráticas, como resquícios da
ditadura, veem-se em descompasso com a realidade e tendem a ruir, sendo certo
que mesmo as estratégicas da imposição do medo pela força repressiva e da
desinformação, pautada pela deformação dos fatos e pela desqualificação das
pessoas envolvidas, perdem eficácia.
Abala-se
a racionalidade reacionária, pois ninguém está no comando e o povo está em
ação!
São Paulo, 21 de maio de 2014.
Por Jorge Luiz Souto Maior
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