Chefs
brasileiros dissecam os bastidores dos restaurantes e revelam por que se deve
evitar peixes às segundas, brunches e o prato do dia.
Restaurantes
são locais antagônicos.
Dois
mundos opostos convivem em torno de um objetivo comum: empanzinar o cliente. De
um lado, o salão, com suas toalhas imaculadas, musiquinha ambiente no tom
certo, iluminação adequada e a polidez dos garçons. De outro, no interior das
cozinhas, fumaça, suor (a temperatura chega a 60 graus), barulho e brigas.
Muitas. Há um pacto informal entre cozinheiros, ajudantes e lava-louças sobre o
que ocorre nos bastidores dos restaurantes. No ano passado, o chef americano
Anthony Bourdain, do Les Halles, bistrô francês de Manhattan, rompeu o silêncio
ao publicar suas memórias em Kitchen Confidential. O livro virou best-seller (a
primeira edição ficou 14 semanas na lista de mais vendidos do New York Times),
mas provocou a ira de colegas ao desnudar o obscuro mundo das cozinhas.
Sem
medir as palavras, Bourdain revela como chefs transformam sobras em pratos do
dia, conta que servem peixe velho às segundas-feiras e consideram fãs de carne
bem passada a segunda raça mais desprezível do planeta, atrás apenas dos
vegetarianos. Bourdain também descreve as cozinhas nova-iorquinas como antros
povoados por bêbados, ex-prisioneiros e imigrantes chicanos. Mesmo que tenha
carregado nas tintas, o relato de Bourdain é confirmado, em parte, por alguns
chefs brasileiros. É evidente que todos repetem a mesma frase: ''No meu não é
assim, mas eu sei que no...''. Ainda assim, o relato é relevante pois eles
contam o que viram, o que sabem e o que ouviram falar.
Pior
do que o choque com o clima selvagem das cozinhas é descobrir os truques usados
pelos chefs para agilizar o preparo ou economizar ingredientes.
Pedir
o prato do dia achando que se está comendo o que há de melhor na casa, por
exemplo, é uma das armadilhas mais traiçoeiras.
''No
meu não é assim, mas, em geral, todo mundo acha que está comendo ingredientes
fresquinhos, escolhidos a dedo pelo chef. Só que quase todos os restaurantes
aproveitam o prato do dia para utilizar produtos com data de validade quase
vencida'', afirma Flávia Quaresma, dona do restaurante Câreme.
Outro
truque para desovar sobras da semana são os brunches dominicais. ''Eu não vou a
brunch de jeito nenhum. Só um chef consciencioso resiste à tentação de utilizar
ingredientes que sobraram de sexta e sábado nos pratos dobrunch, mas há poucos
chefs assim'', diz Atala.
''Pode
ter certeza que o salmão prestes a vencer vira rilette no brunch'', diz Flávia.
''E tem outro problema: bons chefs odeiam preparar brunch. Todo mundo está de
mau humor, cansado, é um castigo. E eu não quero minha comida preparada assim.
''Mesmo em Nova York , terra que criou o misto de café com almoço dominical, o
brunch é uma tremenda roubada.
''Lá
todo mundo sabe que brunch é sobra. É por isso que os pratos são tão fartos. O
objetivo é se livrar do que está velho e ainda lucrar com isso'', conta o
carioca Felipe Bronze, 23, que já trabalhou no Le Bernardin, Nobu e Four
Seasons, todos estreladíssimos restaurantes de Nova York.
Os
peixes...
Comer
peixe às segundas-feiras é um das mais ardilosas armadilhas proporcionadas
pelos restaurantes.
Anote:
a chance de você comer na segunda um peixe que está na geladeira há quatro dias
é de quase 100%.
Em
geral, as boas casas recebem duas a três entregas de peixe fresco por semana. O
carregamento de sexta é o mais turbinado porque vai sustentar o movimento até
terça, quando chega um novo carregamento. Ou seja: o peixe de segunda é o de
sexta, que foi pescado na quinta. ''Só como peixe às segundas em restaurantes
que sei que compram marisco fresco todo dia, direto dos pescadores, como o
Margutta'', diz Flávia Quaresma.
A
casa, especializada em peixes e considerada uma das melhores do Rio, de fato
tem uma ponte direta com mergulhadores. ''Eles pescam com arpão e trazem, todo
dia, pelo menos uns dez badejos e garoupas'', diz Conceição Neroni, proprietária
do Margutta. Como nem todo mundo conhece o rol de fornecedores dos
restaurantes, a melhor maneira de não mastigar peixe caduco é pedir o prato às
terças e sextas-feiras.
Outra
observação sobre peixes é feita por Gianni Cestroni, dono do Grottamare: ''Depois
de três dias de ressaca no mar, não há quem sirva peixe fresco'', afirma.
''Entre 1 e 2 de agosto, não havia peixe fresco em nenhum local das redondezas
do Rio. Quem disser que tinha, mentiu'', afirma.
E
quanto à carne?
A
idade da carne é um dos maiores mistérios para quem está fora das cozinhas.
Pouca
gente sabe, mas, no Rio, todo T-bone steak servido (um corte especial da carne
bovina) é importado de São Paulo. Isso significa que o corte nunca estará com
todo seu viço. ''Os bons fornecedores estão lá, não tem jeito. Mas o T-bone é
nossa única carne que não é fresca'', diz Wagner Spalla, chef do moderninho
0/0, no Planetário da Gávea.
Uma
das sagas mais bizarras é a do filé.
Segundo
relatam os chefs, a grande peça de filé mignon passa por estágios longuíssimos
até se transformar em escalopinho.
''No
meu não é assim mas, já trabalhei em um restaurante em que o medalhão de filé
que sobrava era cortado em tirinhas e virava escalope. Se também não vendia,
virava algum prato empanado, tipo bife à milanesa. Uns 20 dias depois, quando
já estava no limite da validade, era moído e transformado em ragú (molho
bolonhesa)'', conta Atala.
Blargh!
A
cena descrita é mesmo de arrepiar, mas reciclar pratos e ingredientes é uma
prática corriqueira nos restaurantes. O que sobra dos biscoitinhos servidos com
o café e dos pães do couvert, por exemplo, é invariavelmente transferido para
as cestinhas da próxima mesa.
No
restaurante do prédio do Jockey Club no centro do Rio, onde só se pode comer
vestindo terno e gravata, batatas chips e o arroz de brócolis que ficam na
travessa também são reaproveitados. A cena foi presenciada pela reportagem da
Domingo.
Quem frequenta japoneses deve ter cuidado com a reciclagem. Sabe aquela saladinha
verde com uns nacos de kani-kama? Pois é. Em geral, o kani exposto no sushi bar
de restaurantes costuma ser desfiado para dar cor às saladas do dia seguinte.
''Pratos que usam carne desfiada, não passam de maneiras criativas de
reaproveitar um alimento'', diz Flávia Quaresma.
O
melhor dia é quarta-feira.
Para
ter certeza de estar comendo produtos frescos, só há uma saída: escolher
restaurantes muito movimentados, onde quase não há sobras de comida.
''O
segredo da comida fresca é a rotatividade'', afirma Bronze, usando as mesmas
palavras escolhidas por Bourdain em seu livro para ensinar ao povo do salão a
driblar as roubadas impostas pelo bando da cozinha.
Sob
essa ótica, é muito melhor comer um filé no Brazeiro da Gávea, é altamente
seguro. Também vale à pena escolher pratos que sejam a especialidade da casa,
que têm mais saída e, por isso, muito mais chances de serem frescos.
''Acho
arriscado pedir peixe num lugar em que a especialidade é carne. Eu não
peço nunca'', diz o chef Francesco di Carli, do Cipriani, no Copacabana Palace.
Em
Kitchen Confidential, Bourdain vai mais além, condenando casas com cardápios
gigantes, que servem de tudo um pouco. ''Se o restaurante está cheio e você vê
que o prato que mais sai é a bouillabaisse (uma sopa de peixes), ela é provavelmente
a melhor opção. Mas fuja de lugares com menus extensos e variados,
principalmente se estiverem semi-vazios'', escreveu o chef.
Outro
mito a se desvendar diz respeito a frequentar restaurantes em dias de pouco
movimento, como segundas e terça-feiras. ''Por incrível que pareça, é nos dias
mais calmos que acontecem os maiores desastres. Os funcionários ficam
desatentos, a máquina não está azeitada, e acontece um erro atrás do outro: a
massa passa do ponto, o filé idem, o peixe fica muito salgado. Acho que a gente
trabalha melhor sob pressão'', diz o consultor Luciano Boseggia, ex-chef do
paulista Fasano durante 14 anos.
O
chef Bourdain prega que quem quer ser bem atendido deve concentrar as idas a
restaurantes nas terças, quartas e quintas.
''No
domingo e na segunda, a equipe está exausta e muitos ingredientes, passados. Na
sexta e no sábado, a comida é fresca, mas o chef não pode prestar tanta atenção
no preparo do prato porque está sobrecarregado. Além disso, os fins de semana
atraem uma horda de clientes mais interessados no movimento do que na comida, e
os chefs terminam priorizando a rapidez do que a qualidade'', diz.
Há
um tipo de cliente que irrita mais ainda os chefs do que os gourmets de fim de
semana: aqueles que devolvem pratos alegando que a carne está mal passada.
''Quando
o garçom traz de volta um peixe ou um magret de pato porque o cliente reclama
que está mal passado, todo mundo na cozinha corre para a janela para ver a cara
do sujeito. Quase sempre são mulheres magérrimas ou gente que não tem a menor
cara de saber apreciar um bom prato'', diz Alex Atala, que jura que o infeliz
não sofre retaliação. ''O prato pode demorar um pouco mais a sair, mas é só.''
Na
semana passada, uma mulher que devolveu duas vezes um salmão grelhado no
moderninho 0/0, na Gávea, tirou do sério o normalmente inabalável chef Wagner
Spalla. ''Isso é coisa de pobre que não sabe que salmão não pode ser servido
esturricado. Mas vai fazer o quê?'', diz Spalla, que, depois de jogar no lixo
os dois salmões devolvidos, resolve grelhar sem dó o filé escolhido pela
cliente rebelde em sua terceira tentativa (Mesmo o inabalável Christophe Lidy,
do Garcia & Rodrigues, tem ataques quando isso acontece). Minutos depois, o
garçom volta da mesma mesa devolvendo um talharim negro com lulas fritas. A
reclamação é idêntica: as lulas estariam mal passadas. ''Põe aí na panela e
frita de novo. Vai ficar que nem chiclete'', diz Spalla (ao contrário do
salmão, que não pode voltar à grelha, as lulas são fritas novamente até ficar ao
gosto bizarro da cliente).
Fonte: Guto Freitas
Excepcionalmente verdadeira a exposição do articulista. Sou extremamente crítico em minha alimentação a ponto de querer saber nos mínimos detalhes o que como, de onde são os ingredientes, o estado destes etc.
ResponderExcluirSucede que a maioria das pessoas pouco ou nada se importa com isso e aí a festa passa a ser na cozinha, efetivamente. Muitas vezes sequer tem a ver com o tipo de comida, mas sim com variáveis incontroláveis, como os estados de ânimo dos que operam a cozinha.
Enfim, prefiro os restaurantes simples nos quais você é até convidado a conhecer a cozinha se assim o desejar.
Parabéns e sigam em frente com essas ótimas análises!
Juan I. Koffler