Audhrey amava Eustáquio, que amava Rita, que amava Audhrey.
Os três foram morar juntos há oito anos e hoje formam uma família.
Essa não é uma versão mais curta, alegre e liberal do poema
de Carlos Drummond de Andrade, mas a história de uma família de Belo Horizonte
que, há um ano, possui um documento de união estável poliafetiva. Há pelo menos
oito escrituras desse tipo oficializadas no país.
Audhrey Drummond, 49, e Eustáquio Generoso, 57, se casaram em
1988 e mantiveram um relacionamento de idas e vindas até 1997. Nesse intervalo,
tiveram o filho Iago, 23.
Um ano depois do término, Eustáquio começou a namorar Rita
Carvalho, 45. Não consegui esquecê-lo de jeito nenhum, o homem é terrível, diz
Audhrey. Eles se reencontraram em 2003, e a primeira mulher admitiu que ainda
gostava do ex-marido. Falei que por mim podia ser com a Ritoca mesmo, falou.
Tentaram duas vezes um relacionamento a três, sem sucesso.
Não é de uma hora para outra, leva tempo para se acostumar, explica Rita. Da
terceira, em 2007, foram morar todos juntos e nunca mais se separaram.
Quando ficamos juntos, pintou um churrasco na casa de um
amigo. Pensei: ' Meu Deus, como vou fazer com isso, levar duas mulheres? ’,
lembra Eustáquio. Decidiram que não iriam se importar com o que os outros
dissessem. Se a gente está bem, numa felicidade tão grande, o pessoal fica bem
também.
Eustáquio comprou o apartamento de frente ao dele e colocou
lá a primeira mulher e o filho. Fecharam o acesso pela escada, e as portas
ficam sempre abertas, formando uma casa só.
O que eles têm não é um relacionamento a três: na prática,
Eustáquio tem duas mulheres. Ele tem o seu quarto, e cada uma delas dorme na
cama dele por uma semana. Quando a segunda mulher cede seu lugar, vai para um
quarto ao lado.
Mas não é porque não namoram que as duas não se consideram da
mesma família. Pelo contrário, tornaram-se inseparáveis. Hoje não consigo mais
viver sem ela, afirma Rita.
Em 2012, viram no noticiário que outro “trisal” havia
conseguido registrar a união estável, em Tupã (a 514 km de SP), e resolveram
oficializar a família. Eles pretendem pleitear a inclusão das duas mulheres
como dependentes do plano de saúde de Eustáquio.
Aquela havia sido a primeira escritura de união estável
poliafetiva do Brasil, registrada pela tabeliã Cláudia Domingues. Depois, ela
fez pelo menos outras sete, inclusive a da família mineira. O maior grupo,
conta a tabeliã, envolveu cinco pessoas (três homens e duas mulheres), de Santa
Catarina.
Você não pode se casar com mais de uma pessoa, mas não há
proibição de que você viva com quantas quiser, diz Domingues. A união estável
entre eles é um fato, eu só documento aquilo que já está acontecendo, conta
ela, que estuda o tema em seu doutorado, na USP.
Em 2015, Domingues foi procurada por outra tabeliã, a carioca
Fernanda de Freitas Leitão. Ela foi incumbida de registrar a união de três
mulheres, que vivem juntas no Rio de Janeiro. Elas pretendem ter um filho e
registrá-lo coletivamente.
Ainda não há decisão que garanta direitos automaticamente a
famílias poliafetivas que possuam o documento, explica Leitão. Mas serve de
base para que as pessoas pleiteiem esse direito na Justiça.
Além da inclusão em planos de saúde, famílias poliafetivas
buscam registrar a situação para acrescentar terceiros (ou quartos, quintos
etc.) em planos de previdência e herança, por exemplo.
Especialistas divergem a respeito da validade das uniões
estáveis poliafetivas.
A tabeliã Fernanda Leitão, que já foi procuradora estadual do
Rio de Janeiro, diz acreditar que há respaldo na decisão de 2011 do Supremo
Tribunal Federal que equipara a união homoafetiva ao casamento heterossexual.
De acordo com ela, o tribunal reconhece outras formas de
convivência familiar fundadas no afeto.
O presidente da Associação Brasileira de Direito da Família,
Rodrigo da Cunha Pereira, afirma que a fonte do direito não é a lei, mas os
costumes, e que a legislação costuma se adaptar às mudanças da sociedade.
"A tendência, no direito da família, é o Estado se afastar
cada vez mais da vida das pessoas. A família não é um fenômeno da natureza, mas
da cultura", diz.
Filiado à mesma instituição, o advogado Luiz Kignel discorda
do colega. Ele diz que o número de casos de uniões poliafetivas é pífio se
comparado ao total de casais hétero ou homossexuais, por isso não há uma
indicação de mudança na sociedade.
“A relação entre três ou quatro pessoas pode se formar, mas
não abraçada pelo direito da família. Não tenho nada contra, mas isso não forma
família, que é entre duas pessoas, culturalmente, do mesmo sexo ou não”,
diz. “Não podemos exigir que a sociedade
aceite por causa de oito ou nove casos. ”
UNIÃO HOMOAFETIVA
Em 2011, foi de forma unânime que o Supremo decidiu que não
há diferença entre relações estáveis de homossexuais e heterossexuais e que as
duas configurações formam uma família.
Essa decisão facilitou a adoção de filhos por casais gays,
além de promover segurança jurídica em relação a direitos como pensão, herança
e compartilhamento de planos de saúde.
Fonte: Folha Cotidiano
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