África, Angola. Um dia qualquer da semana. Um dia útil,
como dizem. O ano era 1996.
No meio de uma tarde quente e úmida do mês de maio lá
estava eu, dentro de um velho Mercedes Benz que talvez um dia tivesse sido dourado
e agora estava bege, desbotado pelos maus tratos do tempo. Estofamento de couro
puído, rachado e seco, porém macios e confortáveis diante dos dias perturbados
que passava-se naquela terra. Terra devastada e intricada pela guerra que, na
teoria, havia apenas quatro anos que findara.
O trânsito parou, devido ao grande número de veículos. O ar
condicionado do velho Mercedes funcionava às mil maravilhas. Não fosse por isso
seria impossível para mim permanecer por mais de 5 minutos ali, naquele
habitáculo cálido e imutável.
Uma rua estreita, com carros estacionados em ambos os
lados. Inclusive sobre as calçadas; velhas e de terra batida em alguns trechos.
Carros iam e vinham. Num frenesi de buzinas, desvios,
gritos e xingamentos.
Carros, pequenos caminhões, motocicletas e bicicletas. Um verdadeiro pandemônio.
Um movimento intenso de pessoas locomovendo-se nas
calçadas estreitas, indo e vindo. A maioria sem destino. Falatório, conversas e discussões.
Uma balburdia típica do lugar.
Meu pensamento voou diante do marasmo que se fazia dentro
do Mercedes. Eu era passageiro, sentado no banco ao lado do motorista.
Olhei pela janela a minha direita, disperso, a procurar
sabe-se lá o que.
Meus olhos viam mas meu cérebro não conseguia conciliar a
movimentação em torno, de uma maneira lúcida ou clara. Apenas olhava, sem
conclusões.
De repente meu olhar parou numa senhora negra, mal
vestida como todos ali. Estava sentada no chão, encostada a uma parede com a tinta descascada e marcada por buracos de tiros. Usava um vestido
longo, talvez feito de trapos velhos, que cobria seu corpo dos ombros aos pés
descalços. Vestido azul claro, com detalhes africanos brancos. Na verdade nem era um
vestido, mas sim um pano jogado sobre uma estrutura óssea aparente, coberto por
uma pele escura, enegrecida ainda mais pelo pó e pela fuligem dos veículos
passantes.
Ela tinha um olhar triste, parado, quieto. Manso.
Nos braços segurava e acalentava uma criança que
aparentava ter uns 7 ou 8 meses, mas, devido à desnutrição endêmica do momento
em que passava o país, provavelmente, deveria ter uns 7 ou 8 anos.
Olhei a criança e percebi inanição. Seus olhos opacos, fixos
no infinito. Cabelos ralos e sujos. A boca, entreaberta. Tinha as mãos pequenas
e magras; negras como a mulher que a segurava. Mãos imóveis. Seus braços finos,
dobrados em “V”, em cima do que um dia pode ter sido uma barriga, mas naquele
momento era apenas um emaranhado de pele, e ossos aparentes.
Fixei meu olhar nos dois. Na mulher, que deduzi ser a
mãe, e no filho ou filha que ela segurava nos braços. Me foi impossível distinguir
o sexo da criança.
Passaram-se alguns segundos até que eu pudesse perceber
que a criança não respirava, não se mexia, não estava viva.
Fiquei ali, no confortável banco de couro do Mercedes. Fresco,
refrigerado pelo potente ar condicionado. Estático. Surdo. Mudo. E cego.
Assim como eu, as centenas de pessoas que passavam ao
redor da mulher e da criança também não à viam. Ela estava ali, invisível.
Pisavam-lhe o pé, desviavam de suas pernas, xingavam-na por atrapalhar o fluxo da
multidão, mas não à viam.
Sua dor, seu olhar, eram do tamanho do universo: enorme,
gigantesca, infinita. Mas ninguém à via.
Foram os segundos mais demorados da minha vida. Hoje, quando me lembro daquela cena, aqueles segundos parecem-me horas.
Finalmente o trânsito fluiu. O Mercedes andou, o motorista
buzinava freneticamente, como era de praxe.
O Mercedes se foi, perdeu-se no trânsito insano do lugar,
mas a mulher negra com sua criança não ficaram para trás. Eu às levei comigo, no pensamento. E, no pensamento, às
trago até hoje. Provavelmente irão comigo, até o fim da minha vida. Vida que
aquela mãe e aquela criança, já não tinham mais. E naquele dia, eu morri um
pouco também.
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