Páginas

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

TRÊS MORTES, EM UMA.

África, Angola. Um dia qualquer da semana. Um dia útil, como dizem. O ano era 1996.
No meio de uma tarde quente e úmida do mês de maio lá estava eu, dentro de um velho Mercedes Benz que talvez um dia tivesse sido dourado e agora estava bege, desbotado pelos maus tratos do tempo. Estofamento de couro puído, rachado e seco, porém macios e confortáveis diante dos dias perturbados que passava-se naquela terra. Terra devastada e intricada pela guerra que, na teoria, havia apenas quatro anos que findara.
O trânsito parou, devido ao grande número de veículos. O ar condicionado do velho Mercedes funcionava às mil maravilhas. Não fosse por isso seria impossível para mim permanecer por mais de 5 minutos ali, naquele habitáculo cálido e imutável.
Uma rua estreita, com carros estacionados em ambos os lados. Inclusive sobre as calçadas; velhas e de terra batida em alguns trechos.
Carros iam e vinham. Num frenesi de buzinas, desvios, gritos e xingamentos.
Carros, pequenos caminhões, motocicletas e bicicletas. Um verdadeiro pandemônio.
Um movimento intenso de pessoas locomovendo-se nas calçadas estreitas, indo e vindo. A maioria sem destino. Falatório, conversas e discussões. Uma balburdia típica do lugar.
Meu pensamento voou diante do marasmo que se fazia dentro do Mercedes. Eu era passageiro, sentado no banco ao lado do motorista.
Olhei pela janela a minha direita, disperso, a procurar sabe-se lá o que.
Meus olhos viam mas meu cérebro não conseguia conciliar a movimentação em torno, de uma maneira lúcida ou clara. Apenas olhava, sem conclusões.
De repente meu olhar parou numa senhora negra, mal vestida como todos ali. Estava sentada no chão, encostada a uma parede com a tinta descascada e marcada por buracos de tiros. Usava um vestido longo, talvez feito de trapos velhos, que cobria seu corpo dos ombros aos pés descalços. Vestido azul claro, com detalhes africanos brancos. Na verdade nem era um vestido, mas sim um pano jogado sobre uma estrutura óssea aparente, coberto por uma pele escura, enegrecida ainda mais pelo pó e pela fuligem dos veículos passantes.
Ela tinha um olhar triste, parado, quieto. Manso.
Nos braços segurava e acalentava uma criança que aparentava ter uns 7 ou 8 meses, mas, devido à desnutrição endêmica do momento em que passava o país, provavelmente, deveria ter uns 7 ou 8 anos.
Olhei a criança e percebi inanição. Seus olhos opacos, fixos no infinito. Cabelos ralos e sujos. A boca, entreaberta. Tinha as mãos pequenas e magras; negras como a mulher que a segurava. Mãos imóveis. Seus braços finos, dobrados em “V”, em cima do que um dia pode ter sido uma barriga, mas naquele momento era apenas um emaranhado de pele, e ossos aparentes.
Fixei meu olhar nos dois. Na mulher, que deduzi ser a mãe, e no filho ou filha que ela segurava nos braços. Me foi impossível distinguir o sexo da criança.
Passaram-se alguns segundos até que eu pudesse perceber que a criança não respirava, não se mexia, não estava viva.
Fiquei ali, no confortável banco de couro do Mercedes. Fresco, refrigerado pelo potente ar condicionado. Estático. Surdo. Mudo. E cego.
Assim como eu, as centenas de pessoas que passavam ao redor da mulher e da criança também não à viam. Ela estava ali, invisível. Pisavam-lhe o pé, desviavam de suas pernas, xingavam-na por atrapalhar o fluxo da multidão, mas não à viam.
Sua dor, seu olhar, eram do tamanho do universo: enorme, gigantesca, infinita. Mas ninguém à via.
Foram os segundos mais demorados da minha vida. Hoje, quando me lembro daquela cena, aqueles segundos parecem-me horas.
Finalmente o trânsito fluiu. O Mercedes andou, o motorista buzinava freneticamente, como era de praxe.
O Mercedes se foi, perdeu-se no trânsito insano do lugar, mas a mulher negra com sua criança não ficaram para trás. Eu às levei comigo, no pensamento. E, no pensamento, às trago até hoje. Provavelmente irão comigo, até o fim da minha vida. Vida que aquela mãe e aquela criança, já não tinham mais. E naquele dia, eu morri um pouco também.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe aqui seu comentário. Ele é a nossa recompensa.