Quando eu era moleque, passava a maior parte do
tempo jogando bola na rua.
Alguns jogos eram menores, apenas eu e meus amigos.
Mas, às vezes o bairro era palco de alguns clássicos. Eram jogos que reuniam
meu time contra a turma de outra rua e que pediam cenários mais grandiosos.
Assim, aconteciam no mais próximo que tínhamos do padrão FIFA: o estacionamento
de um supermercado, muito maior e com direito, até mesmo, a uma mureta, usada
como arquibancada por quem passava ali.
Ganhamos muito, perdemos muito também. Até hoje, me
lembro de muita coisa desta época. Dribles, gols, brigas… E do garoto que
mancava.
O garoto que mancava jogava com a gente. Na
verdade, ele não mancava. Andava e corria normalmente, sem mancar… Até perceber
que algumas pessoas estavam na mureta assistindo ao jogo. Aí, na primeira
dividida, dava um grito de dor e passava o resto do jogo mancando. Ou, melhor,
fingindo que estava mancando.
Um dia eu o questionei sobre isso. Ele mentia no
grito de dor, mas foi sincero na resposta.
— Eu manco
para o jogo parecer que está mais difícil para mim.
— Oi?
— Todo mundo
vai reparar que eu meu esforcei, porque estava jogando machucado. Tanto faz se
vamos ganhar ou perder. As pessoas vão ver que eu joguei machucado, e serei um
herói de qualquer maneira.
Concluí que ele era um idiota e nunca mais toquei
no assunto.
Mas, com o passar dos anos, comecei a perceber que
existe mais gente fingindo que manca do que eu teria imaginado quando jogava
bola no estacionamento do supermercado. Vi isso no colégio, depois na
faculdade.
Na vida profissional, mesma coisa. Se você trabalha
numa empresa grande, basta olhar ao redor de vez em quando e, com um pouco de
sorte, verá uma pessoa “mancando” pelo escritório. É o sujeito que está sempre
reclamando do quanto tudo é difícil, que as piores coisas sempre caem na mesa
dele, que o computador insiste em travar, que o prazo é curto, que a vida dele
é mais complicada…
A pessoa não sabe fazer nada sem mostrar o quanto
aquilo é difícil, somente para valorizar ao extremo o que ela está fazendo. Age
como se estivesse reescrevendo a Jornada do Herói todos os dias, sempre na
parte da Provação Suprema – e faz questão que todos percebam isso. Todo mundo
no escritório está trabalhando; ela, derrotando adversidades e se superando de
forma quase inumana.
Sempre existiu gente assim no mundo. E acho que
sempre vai existir.
Entretanto, tenho reparado que, de uns tempos para
cá, o ato de reclamar exageradamente parece ter saído do universo profissional
e se expandiu. Agora, isso vale para qualquer assunto. O pensamento de que uma
conquista só tem valor se ela foi difícil (caso contrário ela é quase nula)
parece não valer mais somente para o mundo profissional.
Houve uma inversão de valores: se dá muito mais
importância à dificuldade em realizar algo do que à realização em si.
Não sei quem começou com este raciocínio, mas esta
lógica é perigosa. Voltando ao mundo do futebol, é o mesmo que dizer que uma
taça conquistada nos pênaltis tem mais valor que uma taça recebida depois de
uma goleada de 5 x 0.
Hoje, não basta fazer bem feito. É preciso fazer
com sangue, suor e lágrimas. E, claro, alardear esta dificuldade aos quatro
ventos.
Abra
o Twitter ou o Facebook. Não vai ser preciso procurar muito até encontrar
alguém reclamando do chefe, da pessoa que não responde e-mail, da fila da
lanchonete, da burocracia do banco, da incompetência do vendedor… O resumo da
ópera é sempre o mesmo: “meu dia está complicado”.
Ou,
indo além: “meu dia está mais complicado que você imagina”.
Ou,
melhor ainda: “meu dia está mais complicado que o seu”.
Ter
problemas se tornou a grande virtude do século 21. É preciso anunciá-los, como
se fossem prova de eficiência, de talento, de construção de caráter.
Em
alguns casos, reclamar sobre um problema para anunciá-lo se tornou mais
importante que resolvê-lo. Dia desses, um amigo comentou comigo que havia
pedido umas fotos para um assessor de imprensa, e nada do sujeito responder ao
e-mail. Perguntei:
— Faz quanto tempo que você mandou o e-mail?
— Uns dez minutos! E é urgente!
— Bom, então por que você não liga para o cara?
— Porque eu estou sem tempo!
“Não,
você não está sem tempo. Se estivesse sem tempo até para pegar o telefone e
ligar, você não estaria reclamando disso comigo”, concluí.
Na
verdade, eu já estava pensando outra coisa. Meu amigo estava enlouquecido por
causa de um e-mail mandado minutos antes. Provavelmente, as fotos chegariam
minutos depois. Vinte anos atrás, para o meu amigo conseguir as fotos, ele
teria que ligar para o assessor de imprensa, que teria que gravar um CD com as
imagens, mandar por motoboy (ou por correio)… Visto hoje, esse procedimento
parece pré-histórico. Mas funcionava.
Ou
seja, a tecnologia facilitou muito a nossa vida. Isso, claro, na teoria.
Pois,
na prática, as coisas são um pouco diferentes. A tecnologia ajudou, sim, a
tornar tudo mais rápido. Mas ela também criou necessidades que demandam ainda
mais tempo para ser resolvidas. Truco.
Atualmente
temos recursos que nossos avós nem sonhavam, mas ao mesmo tempo a vida é muito
mais complicada hoje que no tempo deles. Antigamente, as fotos do meu amigo
chegariam no dia seguinte e isto estava ótimo. Hoje, elas chegam cinco minutos
depois, mas é insuficiente, precisa ser mais rápido.
A
gente avançou tanto pra chegar lá atrás, no começo
A
gente avançou tanto pra chegar lá atrás, no começo
O
tempo é apertado, o prazo é para ontem, o resultado precisa ser imediato. A
grana está cada vez mais curta, o individualismo fica cada vez maior, a
intolerância (a tudo) cresce a níveis assustadores.
A
vida hoje é mais difícil que décadas atrás? Sem dúvida. A prova disso é que
hoje temos doenças que nem existiam cem anos atrás. A vida hoje deveria ser
mais fácil que décadas atrás? Sem dúvida. Mas não é assim que funciona. Mesmo
com todos os recursos tecnológicos, a qualidade de vida parece cair ladeira
abaixo. Com isso, sobram reclamações. Sobre tudo e o tempo inteiro.
Claro
que não estou falando de desabafos, do bom e velho “xingar muito no Twitter”.
Todos nós temos o direito de detestar aquele dia em que tudo dá errado.
Reclamar do chefe pentelho, da falta de grana ou do metrô lotado faz parte. E
faz bem para a alma. Mas não torne a reclamação uma forma de se valorizar
perante o público.
Não
se queixe em busca de aplausos, pois não jogarão flores no palco. Ninguém está
nem aí para as reclamações dos outros. Você vai estar apenas perdendo tempo. Se
o meu amigo de infância tivesse prestado atenção, teria reparado que as pessoas
ali nem notaram que o loirinho da ponta direita estava mancando.
Estavam
mais preocupados em olhar o craque do time.
E
como abri o texto com uma história do meu passado, vou fechá-lo com outra.
Anos
atrás, eu fazia a revista de uma empresa. No começo do mês, o dono da empresa
me ligava e passava as pautas que queria. Eu tinha três ou quatro dias para
produzir tudo. Uma vez, ele sugeriu uma matéria impossível, que sozinha
consumiria mais da metade do meu prazo. Eu, no telefone, respondi:
–
Porra, essa matéria vai ser muito difícil de ser feita.
Ele
nem pensou para responder.
–
Eu sei disso. É por isso que estou passando para você. Se fosse fácil, eu mesmo
faria.
Três
dias depois, entreguei a matéria. Foi uma das melhores que escrevi na vida. E
eu nunca esqueci essa lição.
As
coisas são difíceis porque são suas. Se fossem fáceis, elas estariam nas mãos
de um babaca qualquer, que não saberia nem por onde começar, e provavelmente
não seria digno delas.
E
isso não vale somente para trabalho. Vale para sua vida inteira.
Se
a regra é matar um leão por dia, reclamar que a espingarda é ruim ou que as
balas estão acabando não vai fazer de você um herói, e muito menos que o leão
tenha pena. O segredo é mirar e matar o leão. Todos os dias.
Aí
sim você pode xingar o leão do que quiser.
E
se preparar para o próximo.
Fonte: Papo de Homem
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