Senhor procurador Cléber Eustáquio Neves.
Escrevo-lhe esta carta porque soube que o Sr. entrou com ação na Justiça
solicitando a imediata retirada de circulação, suspensão de tiragem, venda e
distribuição do dicionário Houaiss, porque no verbete “cigano” há acepções ao
seu ver carregadas de preconceito ou xenofobia, apesar da informação explícita
no dicionário de que tais acepções são pejorativas. Para o Sr., o
texto do verbete afronta a Constituição e pode ser considerado racismo. É para
ajudá-lo nessa importante tarefa de cortar as afrontas linguísticas à
Constituição que lhe escrevo esta carta aberta, na esperança de que ela lhe
chegue às mãos.
Há outros verbetes racistas e preconceituosos que afrontam nossa Carta Magna,
como “judiar”, “judiaria”, “judiação”, uma verdadeira apologia ao
antissemitismo. Mande suprimir também o verbo “denegrir” que é um acinte aos
afrodescendentes por sua significação pejorativa. Por que o luto tem de ser
preto? Envie uma mensagem ao Congresso para que faça uma lei que proíba a cor
negra para o luto. Mande retirar também dos dicionários o verbete
“mulato”, que se origina do nome “mula” e é uma ofensa também aos que têm a cor
da Gabriela de Jorge Amado. Aliás, também deve ser retirada dos dicionários a
expressão “eminência parda”, por sua conotação negativa que agride os que são
pardos.
Seria bom também retirar do dicionário o verbete “esquimó”. Na língua do povo
mongólico que habita as regiões geladas da Groenlândia, Canadá e Alasca, a
palavra “esquimó” significa “comedor de carne crua”, o que é altamente
ofensivo para esse povo que prefere ser chamado de “inuit”, que quer dizer
“povo”. Os esquimós, digo, os inuits, também merecem respeito, embora morem
longe do Brasil.
Por que não mandar suprimir todos os palavrões dos dicionários? Pense num
adolescente ou numa criança que, ao abrir o Houaiss ou o Aurélio, encontre um
palavrão desses cabeludos que fariam enrubescer uma freira de pedra. Trata-se
de pornografia explícita que deve ser extirpada.
Aliás, por que as notas musicais pretas são de menos valor que as brancas?
Trata-se de racismo velado, já que uma semifusa, por exemplo, toda pretinha,
vale bem menos que uma semibreve, toda branquinha. Mande tirar o negrume das
notas musicais e mande apreender todas as partituras, de Bach a
Villa-Lobos, por exemplo, porque todas contêm notas pretas de menor valor que
as notas brancas.
Mande suprimir nos livros de Física a expressão “buraco negro”, e de todos os
dicionários expressões como “magia negra”, “humor negro”, “ver as coisas
pretas”, todas com conotações altamente ofensivas à raça que tanto fez
pelo progresso de nossa Terra.
Aliás, por que não mandar recolher todas as gramáticas da língua que ensinam
que a concordância nominal se faz no masculino mesmo que haja um único homem
entre milhões de mulheres? Trata-se de um preconceito contra as mulheres ainda
não previsto na Lei Maria da Penha.
Como vê, Sr. Procurador, sua tarefa é extremamente árdua. Haveria outras coisas
a dizer, como o preconceito contra a raça branca, encontradiço também nos dicionários,
pois passar a noite em claro, dar um branco (quando se perde momentaneamente a
memória), arma branca, casamento branco, elefante branco, greve branca,
intervenção branca, versos brancos, escravatura branca, viúva branca, ditadura
branca, e outras mais, são expressões que devem ser abolidas por sua conotação
pejorativa, nitidamente racista.
Se de todo for impossível acabar de vez com os dicionários e livros
científicos, só lhe resta uma solução, dada a dificuldade de cumprir sua missão
de salvar a língua portuguesa e a cultura brasileira dos preconceitos e
afrontas à Constituição: aposente-se.
Um abraço fraterno do admirador José Augusto Carvalho.
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