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quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Atirei o pau no gato-to-to.. mas o gato-to-to não morreu….

Tempos modernos.

Escutamos idosos repetindo à exaustão como os tempos mudaram, mas com advento da internet, esta mudança foi acelerada absurdamente. Hoje mesmo gerações jovens podem sentir uma mudança radical em apenas uma ou duas décadas. Sim, o tema já está batido no campo da abstração, não vou ficar teorizando sobre mudanças sociais. Hoje quero falar da parte prática.

Me peguei pensando no que aconteceria se fosse possível deslocar no tempo e inserir hoje, de forma inédita, alguns programas, personagens ou obras de arte. Como será que as pessoas reagiriam hoje, em tempos de patrulha ofendida, de opressão politicamente correta, a grandes sucessos da cultura pop do passado? Porque uma boa obra é atemporal: um livro, um filme, o que quer que seja. Isto está se perdendo.

O primeiro exemplo que me veio à mente foi o seriado Chaves. Como será que o público reagiria se, sem qualquer precedente, um seriado assim fosse exibido? Um homem que não paga o aluguel, bate em crianças e declaradamente não gosta de trabalhar provavelmente receberia uma calorosa recepção nas redes sociais: um péssimo exemplo para as crianças, que deveria ser silenciado. Crianças cometendo furtos, violência constante entre os adultos, bullying com uma idosa e com um obeso… Tudo viraria motivo de indignação. Provavelmente Chaves seria cancelado no seu primeiro mês de exibição, isso se o piloto fosse aprovado.

Pensei também no grande sucesso de público, o filme “Quem vai ficar com Mary”. Maus tratos a animais, bullying com deficiente mental, mulher em condição inferiorizada. Boicote certo. Ofendidos por todos os lados. Provavelmente o roteiro nunca teria saído do papel, como de fato centenas de filmes como este estão em algum canto empoeirado não sendo filmados por causa do impacto negativo que gerariam no grande público.

O que dizer de Silvão, meu herói? Silvio Santos, o cara que joga dinheiro para a pobralhada da platéia e assiste eles se estapeando para pegar, enquanto os ridiculariza. Ok, ele faz até hoje, mas de forma mais light e coberto pelo manto da intocabilidade da terceira idade. Se ele fosse um rapaz jovem e tivesse a iniciativa de começar se portando assim HOJE, sem nunca ter feito isso antes, o que será que estariam falando dele em Twitter ou Facebook? Certamente de tudo. Desde o desrespeito com os menos favorecidos até um discurso político raivoso acusando-o do combo reacionário/elite branca/burguês. Se fosse HOJE, Silvão não teria prosperado.

Lembro de um quadro onde ele pedia que os populares digam que o “tenis Montreal PROtege os pés CONTRA os MICRóbios”. Evidente que era pedir demais, e vinha um show de POtrege e MICÓbrios. Silvão ria nos cornos da pobralhada, debochava do erro, abanava as notas de dinheiro na fuça da pessoa e as guardava no próprio bolso na sua frente. Se fosse hoje em dia, tinha campanha no Twitter mandando bater nele ou prendê-lo. Políticos oportunistas questionariam a manutenção da sua emissora e Luciano Huck lançaria um bordão #SomosTodosAnalfabetos.

Tom & Jerry, Pica Pau e outros desenhos da mesma época provavelmente nunca chegariam a ser animados. Estelionato, má influência, incitação à violência e outras dezenas de acusações causariam um boicote que os tornaria inviáveis comercialmente. Ninguém gostaria de anunciar/vincular seu produto a um desenho onde um gato e um rato se perseguem com um facão, se explodem, se batem. E onde não há anunciante, não há programação.

Nosso amado idolatrado mestre Alborghetti não duararia um suspiro no ar. Seu humor de mau humor, seu humor involuntário, seria imediatamente calado. Homofóbico, violador dos direitos humanos e coisas piores seriam imputadas à sua pessoa. O programa Cadeia seria objeto de ações judiciais por partes de militantes de todas as causas de todas as ONGs e ele seria execrado em redes sociais. Talvez tivesse sua casa incendiada por justiceiros com tochas. Não que você tenha que gostar e aplaudir, jamais, viva à diversidade de opinião. O querer calar o que você não gosta é que me incomoda.

Nem mesmo a Globo, a maior endossadora dessa opressão polticiamente correta (ainda que de forma passiva) ficaria impune. Os Trapalhões, um dos seus programas de maior audiência na história, seriam acusados de racismo, homofobia, mau gosto e muito mais. O negro sempre visto como um alcoolatra, como o sacaneado, como o vagabundo. Isso daria um problema enorme, certamente o Ministério Público falaria em tirar o programa do ar. O programa e os filmes. Sim, se fosse hoje em dia, não passaria de um programa.

Eu poderia passar páginas e mais páginas citando exemplos da década de 80 e 90, que eram e SÃO perfeitamente aceitos até hoje, mas se tivessem seu começo atualmente seriam sumariamente abortados. Mas não vou, porque vocês são plenamente capazes de lembrar ou pesquisar este conteúdo sozinhos. Aproveito as páginas que me restam para fazer uma breve análise desde estranho fenômeno.

No direito existe uma coisa chamada “direito adquirido”. Significa que quando um direito seu está consolidado, quando você alcançou todos os requisitos para adquirir esse direito, não pode vir uma lei e suprimi-lo do nada. Essa lei que suprime direitos vale apenas para aqueles que ainda não os tem. Por exemplo, hoje todos têm o direito de ter filhos. Se amanhã ou depois surgir uma lei que multe a pessoa por cada filho, ela só vai poder ser aplicada às mulheres que ainda não engravidaram.

Acredito que algo similar aconteça com o humor. Existe um “humor adquirido”, ou seja, um humor que, destacado do contexto, ofenderia profundamente nos dias de hoje e seria boicotado. Mas como em algum momento da história teve um “aval social”, ele é tolerado. Isso, a meu ver, é de uma burrice infinita, coisa de gente que não sabe fazer juízo de valor, apenas olha em volta e se o bando diz que sim concluí que pode, se o bando diz que não, entende que não pode e aproveita a ocasião para linchar com força (seja física ou moralmente) quem ousou destoar do socialmente instituído. Os medíocres sobre os quais vivemos falando, que não tem interesse em empurrar as fronteiras, em conquistas, apenas tem interesse na segurança social.

Da mesma forma que todos os exemplos citados não seriam viáveis hoje em dia, fico me perguntando quantos projetos geniais com potencial de divertir, agradar e cair no gosto do povo estão sendo arquivados neste exato momento por não se adequarem ao politicamente correto. Muitos. Assim como a Igreja Católica queimava valiosos livros repletos de conhecimento na idade média, fazemos uma versão pós-moderna disso “queimando” (ou não permitindo que venha a público) obras nas quais provavelmente há um conteúdo que em muito divertiria e acrescentaria, faria questionar.

O grande lance de romper barreiras, de puxar a linha do permitido mais para frente, é essa: faz pensar, faz refletir, faz questionar. Mas não pode, isso é quase crime no Brasil. O povo não sabe e não quer fazê-lo.

Isso tudo já seria motivo para lamentar, afinal, quanta coisa bacana, genial, está sendo sonegada por causa da mesquinharia histérica do politicamente correto? Mas, na minha nunca humilde opinião, eu acho que o pior não é isso. O pior é as pessoas não se darem conta do mecanismo de dois pesos e duas medidas: aceitam uma piada de negro nos Trapalhões, aceitam Jerry cortando Tom no meio com um facão, aceitam Seu Madruga batendo no Chaves mas se isso é reproduzido em outra escala que foge à familiaridade deles, é combatido fervorosamente.

São hipócritas burros, quase que involuntários, pois falta algo em suas engrenagens cerebrais para detectar a contradição: o mesmo que eles aceitam eles repudiam. Isso ocorre porque sua aceitação é formada não por um juízo de valor de um cérebro pensante, e sim pelo movimento da manada. A manada autorizou Pernalonga dando tiro no Hortelino? Ok, então pode. A manada não autorizou jogo de videogame onde dá tiro? Então não pode, esse jogo cria assassinos, deveria ser censurado e é a causa de um crime que foi cometido.

Quantos Chaves, quantos Alborghettis, quantos clássicos que divertiriam o povo e o faria pensar teríamos se tivessem o aval social estamos perdendo nesta década cagada de patrulhamento? Muitos. Uma pena que as artes, o legado para gerações futuras seja essa bostinha pasteurizada que vemos hoje. Estes “Chaves” que estão se perdendo ficarão esquecidos, desconhecidos, a menos que façam como a gente e corram para o último refúgio de território livre que é a internet. Ainda assim, a hostilidade será grande, a missão será árdua e terão que trabalhar de graça se quiserem ser donos da sua escrita.

Ou seja, estamos matando não apenas o humor, a cultura e o entretenimento desta geração, como ainda sonegando uma amostra disso para as próximas. Como é que uma criança nascida HOJE vai ter acesso a piadas politicamente incorretas para que, querendo, tome esse caminho? Não vai. Vai ter acesso sempre a mais do mesmo, ao que a sociedade considera aceitável. Por não conhecer a diversidade, a contrariedade, não será capaz de contrariar com eficiência. Medo de que chegue um ponto que o ser humano perca a capacidade de ser politicamente incorreto e que os valores sociais engessem tudo que ele faz, fala ou escreve.

Pensem nisso. Quantos “Chaves” estamos perdendo porque essas pessoas não têm voz? Se os meios de comunicação “normais” não dão voz a nada que destoe do socialmente delimitado, é hora de procurar fontes alternativas. Não deixe uma massa burra te dizer do que você pode e do que você não pode gostar.


Um minuto de silêncio pelos milhões de projetos, roteiros e ideias jogadas de lado por emissoras por não compactuarem com o socialmente aceito. Muitas delas minhas.

Texto de "Sally" (http://www.desfavor.com/blog/)

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