Tempos
modernos.
Escutamos
idosos repetindo à exaustão como os tempos mudaram, mas com advento da
internet, esta mudança foi acelerada absurdamente. Hoje mesmo gerações jovens
podem sentir uma mudança radical em apenas uma ou duas décadas. Sim, o tema já
está batido no campo da abstração, não vou ficar teorizando sobre mudanças
sociais. Hoje quero falar da parte prática.
Me
peguei pensando no que aconteceria se fosse possível deslocar no tempo e
inserir hoje, de forma inédita, alguns programas, personagens ou obras de arte.
Como será que as pessoas reagiriam hoje, em tempos de patrulha ofendida, de
opressão politicamente correta, a grandes sucessos da cultura pop do passado?
Porque uma boa obra é atemporal: um livro, um filme, o que quer que seja. Isto
está se perdendo.
O
primeiro exemplo que me veio à mente foi o seriado Chaves. Como será que o
público reagiria se, sem qualquer precedente, um seriado assim fosse exibido?
Um homem que não paga o aluguel, bate em crianças e declaradamente não gosta de
trabalhar provavelmente receberia uma calorosa recepção nas redes sociais: um
péssimo exemplo para as crianças, que deveria ser silenciado. Crianças
cometendo furtos, violência constante entre os adultos, bullying com uma idosa
e com um obeso… Tudo viraria motivo de indignação. Provavelmente Chaves seria
cancelado no seu primeiro mês de exibição, isso se o piloto fosse aprovado.
Pensei
também no grande sucesso de público, o filme “Quem vai ficar com Mary”. Maus
tratos a animais, bullying com deficiente mental, mulher em condição
inferiorizada. Boicote certo. Ofendidos por todos os lados. Provavelmente o
roteiro nunca teria saído do papel, como de fato centenas de filmes como este
estão em algum canto empoeirado não sendo filmados por causa do impacto
negativo que gerariam no grande público.
O
que dizer de Silvão, meu herói? Silvio Santos, o cara que joga dinheiro para a
pobralhada da platéia e assiste eles se estapeando para pegar, enquanto os
ridiculariza. Ok, ele faz até hoje, mas de forma mais light e coberto pelo
manto da intocabilidade da terceira idade. Se ele fosse um rapaz jovem e
tivesse a iniciativa de começar se portando assim HOJE, sem nunca ter feito
isso antes, o que será que estariam falando dele em Twitter ou Facebook?
Certamente de tudo. Desde o desrespeito com os menos favorecidos até um
discurso político raivoso acusando-o do combo reacionário/elite branca/burguês.
Se fosse HOJE, Silvão não teria prosperado.
Lembro
de um quadro onde ele pedia que os populares digam que o “tenis Montreal
PROtege os pés CONTRA os MICRóbios”. Evidente que era pedir demais, e vinha um
show de POtrege e MICÓbrios. Silvão ria nos cornos da pobralhada, debochava do
erro, abanava as notas de dinheiro na fuça da pessoa e as guardava no próprio
bolso na sua frente. Se fosse hoje em dia, tinha campanha no Twitter mandando
bater nele ou prendê-lo. Políticos oportunistas questionariam a manutenção da
sua emissora e Luciano Huck lançaria um bordão #SomosTodosAnalfabetos.
Tom
& Jerry, Pica Pau e outros desenhos da mesma época provavelmente nunca
chegariam a ser animados. Estelionato, má influência, incitação à violência e
outras dezenas de acusações causariam um boicote que os tornaria inviáveis
comercialmente. Ninguém gostaria de anunciar/vincular seu produto a um desenho
onde um gato e um rato se perseguem com um facão, se explodem, se batem. E onde
não há anunciante, não há programação.
Nosso
amado idolatrado mestre Alborghetti não duararia um suspiro no ar. Seu humor de
mau humor, seu humor involuntário, seria imediatamente calado. Homofóbico,
violador dos direitos humanos e coisas piores seriam imputadas à sua pessoa. O
programa Cadeia seria objeto de ações judiciais por partes de militantes de
todas as causas de todas as ONGs e ele seria execrado em redes sociais. Talvez
tivesse sua casa incendiada por justiceiros com tochas. Não que você tenha que
gostar e aplaudir, jamais, viva à diversidade de opinião. O querer calar o que
você não gosta é que me incomoda.
Nem
mesmo a Globo, a maior endossadora dessa opressão polticiamente correta (ainda
que de forma passiva) ficaria impune. Os Trapalhões, um dos seus programas de
maior audiência na história, seriam acusados de racismo, homofobia, mau gosto e
muito mais. O negro sempre visto como um alcoolatra, como o sacaneado, como o
vagabundo. Isso daria um problema enorme, certamente o Ministério Público
falaria em tirar o programa do ar. O programa e os filmes. Sim, se fosse hoje
em dia, não passaria de um programa.
Eu poderia
passar páginas e mais páginas citando exemplos da década de 80 e 90, que eram e
SÃO perfeitamente aceitos até hoje, mas se tivessem seu começo atualmente
seriam sumariamente abortados. Mas não vou, porque vocês são plenamente capazes
de lembrar ou pesquisar este conteúdo sozinhos. Aproveito as páginas que me
restam para fazer uma breve análise desde estranho fenômeno.
No
direito existe uma coisa chamada “direito adquirido”. Significa que quando um
direito seu está consolidado, quando você alcançou todos os requisitos para
adquirir esse direito, não pode vir uma lei e suprimi-lo do nada. Essa lei que
suprime direitos vale apenas para aqueles que ainda não os tem. Por exemplo,
hoje todos têm o direito de ter filhos. Se amanhã ou depois surgir uma lei que
multe a pessoa por cada filho, ela só vai poder ser aplicada às mulheres que
ainda não engravidaram.
Acredito
que algo similar aconteça com o humor. Existe um “humor adquirido”, ou seja, um
humor que, destacado do contexto, ofenderia profundamente nos dias de hoje e
seria boicotado. Mas como em algum momento da história teve um “aval social”,
ele é tolerado. Isso, a meu ver, é de uma burrice infinita, coisa de gente que
não sabe fazer juízo de valor, apenas olha em volta e se o bando diz que sim
concluí que pode, se o bando diz que não, entende que não pode e aproveita a
ocasião para linchar com força (seja física ou moralmente) quem ousou destoar
do socialmente instituído. Os medíocres sobre os quais vivemos falando, que não
tem interesse em empurrar as fronteiras, em conquistas, apenas tem interesse na
segurança social.
Da
mesma forma que todos os exemplos citados não seriam viáveis hoje em dia, fico
me perguntando quantos projetos geniais com potencial de divertir, agradar e
cair no gosto do povo estão sendo arquivados neste exato momento por não se
adequarem ao politicamente correto. Muitos. Assim como a Igreja Católica
queimava valiosos livros repletos de conhecimento na idade média, fazemos uma
versão pós-moderna disso “queimando” (ou não permitindo que venha a público)
obras nas quais provavelmente há um conteúdo que em muito divertiria e
acrescentaria, faria questionar.
O
grande lance de romper barreiras, de puxar a linha do permitido mais para
frente, é essa: faz pensar, faz refletir, faz questionar. Mas não pode, isso é
quase crime no Brasil. O povo não sabe e não quer fazê-lo.
Isso
tudo já seria motivo para lamentar, afinal, quanta coisa bacana, genial, está
sendo sonegada por causa da mesquinharia histérica do politicamente correto?
Mas, na minha nunca humilde opinião, eu acho que o pior não é isso. O pior é as
pessoas não se darem conta do mecanismo de dois pesos e duas medidas: aceitam
uma piada de negro nos Trapalhões, aceitam Jerry cortando Tom no meio com um
facão, aceitam Seu Madruga batendo no Chaves mas se isso é reproduzido em outra
escala que foge à familiaridade deles, é combatido fervorosamente.
São
hipócritas burros, quase que involuntários, pois falta algo em suas engrenagens
cerebrais para detectar a contradição: o mesmo que eles aceitam eles repudiam.
Isso ocorre porque sua aceitação é formada não por um juízo de valor de um
cérebro pensante, e sim pelo movimento da manada. A manada autorizou Pernalonga
dando tiro no Hortelino? Ok, então pode. A manada não autorizou jogo de videogame
onde dá tiro? Então não pode, esse jogo cria assassinos, deveria ser censurado
e é a causa de um crime que foi cometido.
Quantos
Chaves, quantos Alborghettis, quantos clássicos que divertiriam o povo e o
faria pensar teríamos se tivessem o aval social estamos perdendo nesta década
cagada de patrulhamento? Muitos. Uma pena que as artes, o legado para gerações
futuras seja essa bostinha pasteurizada que vemos hoje. Estes “Chaves” que
estão se perdendo ficarão esquecidos, desconhecidos, a menos que façam como a
gente e corram para o último refúgio de território livre que é a internet.
Ainda assim, a hostilidade será grande, a missão será árdua e terão que
trabalhar de graça se quiserem ser donos da sua escrita.
Ou
seja, estamos matando não apenas o humor, a cultura e o entretenimento desta
geração, como ainda sonegando uma amostra disso para as próximas. Como é que
uma criança nascida HOJE vai ter acesso a piadas politicamente incorretas para
que, querendo, tome esse caminho? Não vai. Vai ter acesso sempre a mais do
mesmo, ao que a sociedade considera aceitável. Por não conhecer a diversidade,
a contrariedade, não será capaz de contrariar com eficiência. Medo de que
chegue um ponto que o ser humano perca a capacidade de ser politicamente incorreto
e que os valores sociais engessem tudo que ele faz, fala ou escreve.
Pensem
nisso. Quantos “Chaves” estamos perdendo porque essas pessoas não têm voz? Se
os meios de comunicação “normais” não dão voz a nada que destoe do socialmente
delimitado, é hora de procurar fontes alternativas. Não deixe uma massa burra
te dizer do que você pode e do que você não pode gostar.
Um
minuto de silêncio pelos milhões de projetos, roteiros e ideias jogadas de lado
por emissoras por não compactuarem com o socialmente aceito. Muitas delas
minhas.
Texto de "Sally" (http://www.desfavor.com/blog/)
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