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segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Pai do pai

PAI DE MEU PAI...

Há uma quebra na história familiar onde as idades se acumulam e se sobrepõem e a ordem natural não tem sentido: é quando o filho se torna pai de seu pai.

É quando o pai envelhece e começa a trotear como se estivesse dentro de uma névoa. Lento, devagar, impreciso.

É quando aquele pai que segurava com força nossa mão já não tem como se levantar sozinho. É quando aquele pai, outrora firme e intransponível, enfraquece de vez e demora o dobro da respiração para sair de seu lugar.

É quando aquele pai, que antigamente mandava e ordenava, hoje só suspira, só geme, só procura onde é a porta e onde é a janela – tudo é corredor, tudo é longe.

É quando aquele pai, antes disposto e trabalhador, fracassa ao tirar sua própria roupa e não lembrará de seus remédios.

E nós, como filhos, não faremos outra coisa senão trocar de papel e aceitar que somos responsáveis por aquela vida. Aquela vida que nos gerou depende de nossa vida para morrer em paz.

Todo filho é pai da morte de seu pai.

Ou, quem sabe, a velhice do pai e da mãe seja curiosamente nossa última gravidez. Nosso último ensinamento. Fase para devolver os cuidados que nos foram confiados ao longo de décadas, de retribuir o amor com a amizade da escolta.

E assim como mudamos a casa para atender nossos bebês, tapando tomadas e colocando cercadinhos, vamos alterar a rotina dos móveis para criar os nossos pais.

Uma das primeiras transformações acontece no banheiro.

Seremos pais de nossos pais na hora de pôr uma barra no box do chuveiro.

A barra é emblemática. A barra é simbólica. A barra é inaugurar um cotovelo das águas.

Porque o chuveiro, simples e refrescante, agora é um temporal para os pés idosos de nossos protetores. Não podemos abandoná-los em nenhum momento, inventaremos nossos braços nas paredes.

A casa de quem cuida dos pais tem braços dos filhos pelas paredes. Nossos braços estarão espalhados, sob a forma de corrimões.

Pois envelhecer é andar de mãos dadas com os objetos, envelhecer é subir escada mesmo sem degraus.

Seremos estranhos em nossa residência. Observaremos cada detalhe com pavor e desconhecimento, com dúvida e preocupação. Seremos arquitetos, decoradores, engenheiros frustrados. Como não previmos que os pais adoecem e precisariam da gente?

Nos arrependeremos dos sofás, das estátuas e do acesso caracol, nos arrependeremos de cada obstáculo e tapete.

E feliz do filho que é pai de seu pai antes da morte, e triste do filho que aparece somente no enterro e não se despede um pouco por dia.

No hospital, a enfermeira fazia a manobra da cama para a maca, buscando repor os lençóis, quando o filho gritou de sua cadeira:

– Deixa que eu ajudo.

Reuniu suas forças e pegou pela primeira vez seu pai no colo.

Colocou o rosto de seu pai contra seu peito.

Ajeitou em seus ombros o pai: pequeno, enrugado, frágil, tremendo.

Ficou segurando um bom tempo, um tempo equivalente à sua infância, um tempo equivalente à sua adolescência, um bom tempo, um tempo interminável.

Embalou o pai de um lado para o outro.

Aninhou o pai.

Acalmou o pai.

E apenas dizia, sussurrado:

– Estou aqui, estou aqui, pai!

O que um pai quer apenas ouvir no fim de sua vida é que seu filho está ali.


Façamos tudo pelos que amamos, todos dias, todas horas, enquanto podemos...


Um comentário:

  1. O texto ficou muito bom, então gostaria de compartilhar a musica abaixo. Trata-se de um canção bem tipica do nordeste que meu pai nunca se cansou de reproduzir no rádio a fita que tínhamos em casa. O tempo ensina e ate hoje carrego comigo a eterna reflexão esplanada na musica. Segue:

    Couro De Boi
    Humberto E Marçal

    Conheço um velho ditado, que é do tempo dos agáis.
    Diz que um pai trata dez filhos, dez filhos não trata um pai.
    Sentindo o peso dos anos sem poder mais trabalhar,
    o velho, peão estradeiro, com seu filho foi morar.
    O rapaz era casado e a mulher deu de implicar.
    "Você manda o velho embora, se não quiser que eu vá".
    E o rapaz, de coração duro, com o velhinho foi falar:

    Para o senhor se mudar, meu pai eu vim lhe pedir
    Hoje aqui da minha casa o senhor tem que sair
    Leve este couro de boi que eu acabei de curtir
    Pra lhe servir de coberta aonde o senhor dormir
    O pobre velho, calado, pegou o couro e saiu
    Seu neto de oito anos que aquela cena assistiu
    Correu atrás do avô, seu paletó sacudiu
    Metade daquele couro, chorando ele pediu
    O velhinho, comovido, pra não ver o neto chorando.
    Partiu o couro no meio e pro netinho foi dando
    O menino chegou em casa, seu pai foi lhe perguntando.
    Pra quê você quer este couro que seu avô ia levando
    Disse o menino ao pai: um dia vou me casar
    O senhor vai ficar velho e comigo vem morar
    Pode ser que aconteça de nós não se combinar
    Essa metade do couro vou dar pro senhor levar


    link: http://letras.mus.br/humberto-marcal/1244383/

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